Remocistas, artistas de um espetáculo mórbido

Trabalhar próximo de cadáveres era um projeto que sempre esteve nos planos de Thaissa Fernandes, 23 anos. O interesse pelo universo de pessoas mortas e necropsia começou ainda na infância. “Eu era uma criança ao contrário das outras. Enquanto as outras meninas da minha idade se interessavam por boneca, eu gostava mesmo era de Hallowen, cadáveres, filmes de terror, essas coisas”, revela a jovem.

Formada em Biologia e pós-graduada em Perícia Criminal, Thaissa teve o sonho realizado há cerca de cinco meses, quando começou a trabalhar como remocista do Centro de Perícias Científicas Renato Chaves. “A minha vinda para o trabalho de remoção do IML acabou acontecendo de forma natural. Como eu já fazia um estágio aqui na entidade, por conta da minha pós-graduação, que mexia diretamente com cadáveres, eu soube de uma vaga para remocista e na mesma hora me apresentei para o cargo. Era uma coisa que eu já queria fazer há muito tempo”, garante.

Assumidamente vaidosa, a jovem não dispensa o uso da maquiagem durante o trabalho e se orgulha de ser a única a mulher de um total de 21 remocistas atuantes na Região Metropolitana de Belém. “Como é um trabalho que para muita gente não é considerado normal, as pessoas se assustam quando me veem nos locais de crime pegando nos cadáveres. O que eu mais escuto durante o trabalho é ‘Nossa, uma mulher! Será que ela dá conta?’. Eu dou conta sim. E mais do que isso, eu faço com muito prazer porque eu sou apaixonada pelo meu trabalho”, afirma.

Há oito meses no serviço de remoção do IML, Marcel Lima Nassif, 34 anos, também diz que não tem nenhum problema em exercer a função. “Trabalhar com cadáver e com uma pessoa viva para mim é a mesma coisa. Eu não vejo diferença nenhuma nesse trabalho e se para algumas pessoas isso aqui é um serviço estranho para mim é algo completamente normal”, garante. Formado em técnico em Enfermagem, Marcel afirma que encara o trabalho de forma muito profissional e diz que tenta não se envolver com a emoção dos familiares das vítimas. “Apesar das cenas de comoção que na maioria das vezes encontramos nos locais de crime, nós somos profissionais e não podemos nos deixar envolver com isso. Afinal, encaramos o cadáver como uma peça científica apenas”, ressalta.

CUIDADO

Segundo Boanerges de Nazaré, gerente operacional do serviço de remoção do IML, esse ofício é fundamental para o trabalho do Centro de Perícias e por isso exige que todos os profissionais passem por um treinamento de no mínimo 30 dias antes de começar a exercer a função. “Além de auxiliar os peritos criminalistas, os remocistas são responsáveis pelo transporte do corpo, que requer todo um cuidado e uma orientação para ser encaminhado para a autópsia da mesma forma e do mesmo estado em que foi encontrado no local de crime”, explica o gerente.

Há pouco mais de três meses no serviço de remoção, Paulo Thiago Rodrigues, 27 anos, revela que mesmo antes de exercer a atividade, já acompanhava de perto o trabalho como curioso. “Eu ficava observando nos locais de homicídios, dos acidentes e dizia que um dia eu poderia realizar essa mesma função. E para a minha surpresa, vim parar no IML antes do que eu imaginava. E hoje, posso falar com certeza absoluta, que gosto muito disso. E por mais que as pessoas achem um trabalho estranho, eu não troco esse serviço por outro”, garante Paulo.

CONTRARREGRAS

Como as mãos que mexem os fantoches, ou como quem segura um objeto num cenário de teatro, os remocistas são parte integrante de um espetáculo mórbido que atrai multidões em todos os lugares, em qualquer hora, sob qualquer tempo. Em geral, os corpos estão cobertos por algum pano quando a Divisão de Homicídios com equipe do IML chega ao local do crime. E são eles quem tiram o pano, matando a curiosidade da multidão. Como o descortinar de um espetáculo, que tem no virar e revirar, enxugar de sangue e procurar perfurações o final aguardado. Até que o corpo seja de novo coberto por uma nova cortina, sempre de um tom meio estranho de cinza, empurrado dentro de um baú. E até o “próximo”.

Como essas cenas costumam ocorrer em bairros de periferia, em geral desprovidos de espaços de lazer, de teatros, salas de cinema e bibliotecas, talvez esse “descortinar” seja o único que muitas pessoas podem ver, muitas vezes acompanhadas de crianças, e grande parte dessas ainda bebês de colo. “É claro que não é só gente da periferia que tem essa vontade de acompanhar o trabalho dos remocistas, mas temos que compreender que grande parte dessas pessoas que estão morrendo são jovens de periferia, taxados como bandidos que merecem morrer. Precisamos analisar se essa curiosidade não contém, na verdade, uma banalização velada da vida dos filhos da periferia”, analisa Eduardo Soares, 27 anos, articulador da Pastoral da Juventude e da Campanha Nacional Contra a Violência e Extermínio de Jovens.

Segundo Eduardo, o grande problema não é as pessoas gostarem de ver essas cenas como um espetáculo, e sim só ter esse espetáculo. “O problema não é esperar o pessoal da remoção chegar, o problema é não haver nenhuma reflexão mais profunda, nenhuma mobilização pra que não existam outras cenas dessas. O ruim é ‘querer’ mais jovem pobre morto porque cometeu crime. Não podemos ter em nosso país essa pena de morte velada onde quem tem arma é juiz. Se ao menos o povo que vê refletisse sobre o que vê, seria bom”, argumentou.

Fonte: Diário do Pará

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